sábado, 20 de novembro de 2010

Morte aos goles

Roberto tinha uma vida simples, buscava trabalhar honestamente numa cidade sem lei, onde cada um cuidava da sua vida e o resto era somente o resto. Era um homem sozinho, só tinha a esposa no mundo para lhe fazer companhia. Vivia tranqüilo no seu dia a dia de trabalhador. Nas esquinas daquela cidade, Roberto ganhava seu dinheiro vendendo doces. Não era um homem alto, nem era gordo e sua pele parda carregava uma cor de cuia. Tinha o semblante de alguém que trabalhava de sol a sol nas sinaleiras de uma grande capital, sujeito a qualquer situação que um lugar de trabalho como esse pode proporcionar.
Naquele dia, Roberto saiu de casa feliz, estava casado com uma mulher maravilhosa, zelosa e paciente com todas as adversidades que a vida lhe mostrava quase que diariamente. Ao atravessar a rua, quase foi atropelado. Sua cabeça não estava ali. Olhou para o lado, ainda sob os xingamentos do motorista do carro que quase o pegou, desculpou-se e seguiu andando. Mais do que driblar um carro, ele driblava pela primeira vez a morte.
Já era quase meio dia quando Roberto entrou no banco para depositar o dinheiro que juntou vendendo doces na sinaleira. Pensativo, ele lembrou do acidente e da sorte que teve ao conseguir desviar daquele carro, nesse momento dois homens armados invadiram a agência e anunciaram o assalto. Os dois homens poderiam facilmente ser confundidos com crianças, estavam nervosos. Possivelmente era o primeiro assalto da vida daqueles moleques, todos percebiam pelas vozes finas e gestos forçados, a infância perdida naqueles ladrões. O primeiro menino que, apesar da pouca idade, carregava uma arma, ordenou que o segundo passasse com um saco de lixo preto e recolhesse celulares e carteiras. Estava bem assustado, com uma mão segurava o saco e na outra uma arma prateada. O homem foi passando e recolhendo os pertences das pessoas. Quando chegou a vez de Roberto, ele colocou a mão no bolso e inesperadamente o assaltante puxou o gatilho, o disparo foi ouvido de longe, apesar do movimento daquela área da cidade. Os ladrões saíram correndo, levando o que tinham roubado. Quando a polícia chegou Roberto estava estático, com os olhos vidrados. Não havia marca de sangue, quase como um milagre o tiro a queima roupa havia acertado em cheio a máquina de dinheiro a trinta centímetros de distância de Roberto. Fora muita sorte ele não ter morrido. Roberto lembrou do carro e sorriu, tinha um brilho em seu olhar, havia fugido da morte pela segunda vez.
Roberto saiu introspectivo do banco, ainda sob o impacto do que havia acontecido. Andou mais alguns metros e entrou num bar onde tomou algumas cervejas. Na saída, caminhava numa avenida movimentada, já havia caído a noite. Parou para dar uma mijada, ali mesmo na rua, escorado em um muro velho. Debruçado no muro, ouviu um barulho, deu uma passo para trás e viu aquela parede de tijolos cair aos seus pés. Um novo milagre fazia ele escapar ileso. Parecia que a morte lhe queria, mas a vontade de voltar para casa e ver sua mulher era maior que a sorte da morte que perdeu pela terceira vez.
Uma hora mais tarde Roberto descia do ônibus perto da sua casa, em um bairro afastado do centro da cidade. Caminhou por alguns minutos, atravessou um matagal e alguns terrenos baldios, quando ouviu o anúncio de um novo assalto. Como não tinha nada em seu poder o ladrão, irritado, disparou duas vezes contra Roberto e mais uma vez a bala não o acertou mortalmente. Sangrando com um tiro de raspão no braço, Roberto gritou por socorro. Um homem muito estranho, parecendo um zumbi se aproximou. O tal homem era um viciado em crack e tentou roubar Roberto que, ferido, ainda lutou para que o viciado não levasse um pedaço de carne que trazia do mercado. O homem deu algumas pauladas em Roberto que lutou ferozmente. O cansaço enorme quase o matou, mas ele fugiu da “dita”, mais uma vez.
Já cansado e perplexo com tudo que lhe havia acontecido, abriu o portão de sua casa, deu mais alguns passos e ouviu a risada de sua mulher. Seu rosto se iluminou, por quatro vezes quase havia morrido, mas a vontade de estar ali e contar tudo para Luisa era maior. Poder chegar em casa e beijá-la era uma vontade maior que a força da própria morte. Nesse momento seu sorriso se fechou, ouviu a risada de um homem. Pensou por alguns segundos quem poderia estar na sua casa, aquela hora. Olhando o relógio percebeu que faltava ainda três horas do horário normal que ele chegava em casa. Desejou morrer, não tinha coragem de entrar. Não podia acreditar que seu amor estava lhe traindo, não ela, não depois de tudo que ele havia passado. Dentro da casa um silêncio, Roberto espiava na janela e de repente um impacto o apagou.
Lentamente Roberto abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi sua mulher Luisa. Pensou que tudo fosse um sonho e sorriu, mas isso durou pouco, uma voz da cozinha lhe tirou o sorriso do rosto, era a voz do homem. Roberto ainda meio grogue, levantou, pegou uma faca que estava em cima da mesa e partiu para cima dele. Iniciaram uma briga feroz, aos gritos de “pára, pára” da sua mulher. Ela tentava conter a fúria do marido traído. O homem o dominou com facilidade, colocou-o no sofá e explicou o que estava acontecendo. Após algum tempo de conversa, ferido e completamente perdido, Roberto aceitou a traição da esposa, abatido e perplexo permitiu que ela partisse com seu novo amor. Enquanto ela arrumava suas coisas, Roberto refletiu sobre tudo que acontecerá com ele. Juntou todos os sinais: o carro, o assalto, o muro, o novo assalto, o viciado, o amante e percebeu que a morte tinha tentado livrá-lo da decepção daquela traição. Sentiu uma forte dor no peito, seu coração estava partido, não tinha mais motivos para sorrir, abriu a gaveta da pia e pegou um veneno de rato, colocou num copo com água e bebeu. A mulher e seu amante estavam saindo da casa quando olharam Roberto e se despediram. Agora Roberto sabia que encontraria alguém que o queria, tranqüilo, disse adeus.

FIM

Cesar Figueiredo
20-11-10

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