domingo, 5 de dezembro de 2010

Soluções milagrosas do amor

Hoje, mexendo em algumas fotos antigas, lembrei da minha infância, coisa boa ser criança! Pena que minha condição financeira naquela época tenha deixado marcas escuras em meu peito. Muitos acreditam que, para as crianças, o dinheiro não interfere, mas infelizmente isso não é verdade. Não vou justificar nada do que fiz na vida, mas o fato de estar contando essa história tem a ver com o fato de que o dinheiro compra tudo, e falo isso sem medo, pois calei todos que se atravessaram no meu caminho.
Não sou um homem vingativo. Mentira, sou sim, aliás sou mais que vingativo. De monstro a terra está cheia, é só olhar a televisão, os jornais, as revistas, escutar um rádio, prestar atenção nas conversar dos bares, das praças, das filas de hospitais. Onde existir a raça humana haverá o mal incrustado dentro dela.
Quando conheci Raquel me apaixonei, morena linda, de rosto fino e pernas grossas. Essa moça estudada e extremamente educada logo se tornou a mulher dos meus sonhos. Mas Raquel não me dava a menor atenção e talvez o fato de não ter coragem de conversar com ela tenha gerado essa loucura que aconteceu em nossas vidas. Antes que o caro leitor ache que a matei, gostaria de antecipar que nunca faria isso com alguém que amei tanto na vida.
Trabalhava de engraxate na frente do escritório do pai de Raquel durante alguns anos. Sempre que ela passava ficava no ar um perfume doce que me deixava louco, mas a vergonha de ser pobre me proibia o contato. Nunca troquei um olhar com ela, até porque ela nunca olhou para baixo onde eu sempre me encontrava lustrando sapatos.
Meus dias eram sempre os mesmos. Acordava num bairro distante do centro, numa casa velha onde dividia com ratos e baratas as migalhas que ganhava lustrando sapatos dos altos executivos da cidade. Demorava duas horas de ônibus até o centro, o que me dava tempo de sobra para pensar, não tinha outro pensamento a não ser ganhar um dia o coração de Raquel, aquilo sim era paixão, dessas que a gente sente que é para sempre sabe? Daqueles amores que podem ultrapassar a nossa própria existência. Quando chegava ao centro com minha caixa de engraxate, não vou negar, tinha vergonha, mas precisava comer e me vestir. Era humilhado quase que diariamente por aqueles caras de colarinho branco e sapato bico fino. Uma vez um sujeito chegou a cuspir na minha cara porque bem na hora que estava engraxando seu sapato Raquel passou, me tirando a concentração, terminei passando a graxa na suas meias. O homem indignado me fez essa agressão moral, não se cospe na cara de um homem.
Raquel sempre passava sozinha em direção ao escritório de seu pai. Um dia eu disse para mim mesmo que aquele seria o dia que pararia na frente dela e lhe falaria a verdade. Falaria que a amava e que faria de tudo para ficar com ela, mas o medo me impediu, imagina eu, um mero engraxate, atacando um bela mulher no centro da cidade para lhe dizer que a amava. Coisa mais ridícula! Então desisti. Nesse mesmo dia, dentro do ônibus, estava voltando para minha casa quando uma cega entrou vendendo um bilhete da loteria. Comprei o tal bilhete, meio sem esperança, mas ao mesmo tempo com uma puta vontade de mudar de vida e realizar meus sonhos, ao mesmo tempo estaria ajudando aquela mulher que não enxergava e realmente precisa mais do que eu.
Na manhã seguinte, quando entrei na padaria para tomar minha meia taça de café preto e comer um cacetinho, dei uma olhada no jornal, lá estavam os números 13-32-36-41-44-50. Por um instante não acreditei.... Oh, meu Deus ! Eu tinha acabado de ganhar na loteria. A partir daí minha vida mudou, me regularizei na vida, comprei um apartamento num bairro nobre, um carro bonito e tomei um banho de loja. Às vezes passava na frente do escritório para ver se conseguia ver Raquel, mas não tinha sorte. Então voltei a estudar e meu amor ficou em segundo plano, queria ser alguém especial para ela. Eu não sabia falar direito mas com meu dinheiro e um pouco de boa vontade em um ano me tornei uma pessoa influente. Qualquer um que tenha a minha grana é uma pessoa influente.
Numa manhã de sexta feira, comprei flores e fui ao escritório do pai de Raquel. Aquela seria a primeira vez que falaria com ela, não sabia o que dizer. Pensei em falar a verdade, que eu era o engraxate que trabalhava ali na frente e que estava apaixonado por ela há muito tempo e que nunca tive coragem de contar. Entrei no escritório e lá estava ela sentada atrás de uma mesa de vidro perto da janela. Olhava para fora como se estivesse esperando alguém, nem percebeu minha chegada com flores no braço. Toquei a campainha, ela olhou pra frente e deu um sorriso. Uma menina que estava próximo dela me perguntou o que eu queria, mas eu seguia Raquel com os olhos, seu sorriso não era pra mim, mas sim para um homem que, atrás de mim, apareceu no mesmo instante. Mais uma vez ela passou por mim sem me ver e o beijou com ardor. Respondi para a menina que não era nada, que havia me enganado e saí. Arrasado voltei para o meu apartamento, me revoltei comigo por não tê-la procurado antes. Como eu pude ser tão idiota.... como uma mulher linda como ela não teria outros pretendentes... idiota! Idiota!
Depois da culpa veio o desespero, era Raquel que eu queria, nenhuma mulher tinha o mesmo perfume que me fazia sair do chão. Eu não tinha amigos e não gostava de gente, gostava dela e vivia pensando como seria lindo a nossa vida juntos. Passado alguns meses, estava lendo o jornal no café da manhã quando me deparo com a seguinte manchete: “ Mulher encontrada semi nua com marcas de estrangulamento. A vítima se encontra em coma no HPS”, era Raquel, meu sangue ferveu, minhas mãos começaram a suar e o choro foi inevitável. Quem seria capaz de fazer aquilo com uma mulher tão doce como Raquel? Isso já não importava mais, estava decidido, iria me vingar!
A tecnologia foi minha grande aliada na vingança, o primeiro passo foi procurar Raquel nas redes sociais. Assim que encontrei –a, pesquisei seus amigos e últimos namorados, muito fácil essa parte, logo cheguei ao homem que a beijara na única vez que tive coragem de me aproximar de Raquel.
Com alguns trocados arrumei um advogado, um porta de cadeia qualquer, como não queria que ninguém soubesse da minha existência ,convidei o advogado para uma reunião. Nunca falei com ele por celular, nosso primeiro contato foi por telefone convencional, eu liguei de um orelhão e nos encontramos. Ele conseguiu cópias do processo, do boletim de ocorrência e a ficha completa do seu último namorado e possível agressor. O advogado me alertou que estava mexendo com peixe grande e que o valor teria que ser aumentado por motivos óbvios, eu disse que tudo bem, entendia. Para comemorar nossa parceria, levei-o no alto de um morro belíssimo, abri o porta malas e tirei uma champanhe. Brindamos e por um descuido, o advogado caiu do morro. Saí correndo dali, chamei uma ambulância para o local e no dia seguinte fiquei sabendo da sua morte pela TV. Dizia que um advogado caiu bêbado de um morro e quebrou o pescoço, que possivelmente fora vítima de traficantes já que ele representava vários bandidos, lamentei mas segui no meu objetivo.
Estava em minhas mãos à ficha de um homem chamado Carlos Neves. Filho de um político importante na cidade, rico e bem nascido, estudou nas melhores escolas da região, morou fora do país e tinha histórico de pessoa violenta. Usuário de drogas, havia saído de uma clínica há seis meses e namorava Raquel há um ano e meio. Ele estava desaparecido e era considerado o possível agressor , por ser filho de pessoa influente não estava nas páginas dos jornais. Seu pai arrumou um jeito de parecer que a moça tivesse sido vítima de um assaltante ou mesmo de um tarado. O pior é que todos pareciam acreditar nisso, menos eu.
Um dia enquanto espreitava a casa de Carlos, percebi a movimentação de seguranças na rua. Uma mulher saiu da casa com uma sacola, segui-a , ela entrou em um táxi. Saímos do centro da cidade e chegamos a um bairro da periferia. Ela desceu do táxi, atravessou a rua e deixou um pacote em frente a porta de entrada de uma casa velha de madeira, depois saiu e foi embora. Fiquei ali de tocaia, esperando, quando uma viatura encostou atrás de mim. Pediram-me para descer do carro e colocar as mãos sobre o veículo. Expliquei que me perdi naquele lugar horrível, que meu GPS tinha estragado e que estava atrasado para um reunião. Eles pegaram meus dados, me mostraram o caminho e me disseram que uma senhora achou que se tratava de um carro roubado, sorrimos e voltei para casa. Mas antes de entrar no carro percebi que o pacote que a mulher tinha deixado não estava mais na porta de entrada daquela velha casa.
Agora eu tinha certeza que estava na cola do cara e que a polícia não seria um problema, por via das dúvidas resolvi seguir o plano B e ter o máximo de cuidado com tudo. Quando cheguei em casa liguei o meu computador e comprei uma passagem para outro Estado. Vôo no domingo às cinco da manhã, primeira classe. Fiz reserva em um hotel na beira da praia e comprei um carro velho num site de carros usados. Na sexta-feira, estacionei o carro velho há dez quadras de distância da minha casa, no lado de fora do estacionamento de um mercado onde sabia que não havia câmeras de vigilância. No sábado, peguei o carro velho, fui a um beco que conhecia e comprei cinqüenta gramas de cocaína. Na volta passei na frente da provável casa em que Carlos se escondia e deixei a droga num lugar perto da porta de entrada. Fiquei esperando e para a minha surpresa, Carlos apareceu na casa, achou a droga, entrou e apagou a luz. Isso era quase meia noite, meu plano corria bem. Voltei para casa e antes deixei o carro velho no mesmo lugar. Às cinco horas da manhã de domingo, peguei o avião, cheguei no Estado vizinho e fui para o hotel. Conversei com um rapaz que fazia a faxina nos quartos, com uma nota preta disse a ele que queria fazer uma surpresa para minha esposa e que precisava sair dali sem ser notado. Entre sorrisos de cumplicidade, ele me disse que topava. Às oito da manhã ele entrou no quarto para fazer a limpeza e eu sai dentro do carrinho, me deixou na porta dos fundos do hotel e me disse que às quatro da tarde estaria ali para me levar ao quarto novamente. Peguei um táxi e fui ao aeroporto. Voltei para a minha cidade, peguei o carro velho e me dirigi a periferia. No carro uma mochila me acompanhava. Cheguei, estacionei e com a mochila fui até a casa. Encontrei Carlos cheirando, estava na cozinha, um silêncio assustador dominava o ambiente. Carlos tinha os dentes trincados, rondei a casa e percebi que ele estava sozinho. Chutei a porta dos fundos e ele se escondeu embaixo da mesa. Peguei-o e com o sonífero fiz que ele apagasse. Quando recobrou a consciência estava amarrado a uma cadeira.
Eu vestia uma roupa branca e tinha nas mãos um bisturi, a meia luz deixava o ambiente mais estranho. Escolhi de trilha sonora uma bela música clássica, que abafava qualquer barulho e deixava um gosto de prazer naquela situação de desespero e vingança. Olhei Carlos nos olhos, ele chorava, tentava sair da cadeira, tentava se mexer. Quando percebi que ele tinha mijado nas calças, sorri, era engraçado ver o machão se mijando. Ele sabia que eu seria o último rosto de homem que ele veria naquela vida. Tudo que ele fazia era em vão, não havia como fugir, enquanto ele gemia e esperneava eu lembrava dos meus dias de engraxate. Quantos “Carlos” passaram pelo meu caminho e me destrataram de forma arrogante. Então eu lhe disse ao pé do ouvido:
- Oi Carlos! Eu disse: oi! Que triste a tua situação, todo mijado, que nojo!
Cuspi em seu rosto, sentia nojo dele, cadê aquele cara forte, o fodão, o gostosão. Carlos muito assustado grunhia alguma coisa e eu voltei a falar:
- Deve ser estranho estar na tua situação, na real até posso imaginar, já vivi assim, preso a um lugar que não queria estar.
Então sorri. Peguei uma foto da Raquel e lhe mostrei:
- Sabe quem é ela não é?
Ele me olhava e dizia “não”, movimentando a cabeça. Que idiota, claro que ele conhecia. Seu corpo tremia, seu suor escorria e se misturava às lágrimas e meu coração naquele momento era uma montanha de gelo em erupção. Eu poderia cortá-lo em pedacinhos e espalhar pelos quatro cantos da cidade, poderia fazer uma sopa e dar aos pobres nas esquinas, poderia sumir com ele do jeito que eu quisesse. Mas o que eu queria naquele momento era vê-lo sofrer, vê-lo chorar, vê-lo suplicar ajuda para que eu poupasse sua vida. Não vou poupar nada, quero vê-lo se humilhar, rastejar e sucumbir ao meu poder de dizer sim ou não, de decidir quem vive e quem morre.
- Não deveria ter feito isso que tu fez seu viciadinho de merda, mas já que tu fez, agora não vamos chorar o leite derramado,não é?
Nesse momento rasguei-lhe a camiseta e levantei o bisturi. Seus olhos se arregalaram, começou a se debater na cadeira. Eu o peguei pelo queixo e lhe disse:



- Sabe Carlos, eu sempre tive vontade de ter algumas coisas. Como eu queria tê-la beijado, como eu sonhei em possuí-la , como eu desejei -a, mas tudo isso ficou no passado. E antes que tu apague, queria te avisar que há um vazio na minha alma e a culpa é tua seu play boy de merda, temos algumas coisas para colocar em dia, um sentimento tão intenso e perverso, um ódio acumulado por tudo que vivi e presenciei durante esse tempo todo, meus pensamentos te mataram há muito tempo, minha raiva transborda e me cega.
Encostei o bisturi em seu peito e fiz um corte na altura do coração, ele grunhia como um animal pronto para o abate, eu sorria e depositava ali todas as minhas mágoas com a sociedade que me tratara tão mal no passado. Peguei um afastador e abri-lhe o peito, podia ver seu coração bater por causa da cocaína que em seu sangue corria, senti prazer em ver seu coração batendo, então mais uma vez me aproximei
- Tu levou o meu amor, nada mais justo que eu levar teu coração.
E de uma vez só arranquei o coração do seu peito.
Coloquei aquele órgão quente numa sacola de plástico. Troquei de roupa, coloquei as brancas na mochila e queimei tudo na estrada. Peguei o carro e voltei ao hotel. Às quatro da tarde o funcionário do hotel me esperava, entrei no carrinho e ele me levou ao quarto, chamei algumas prostitutas e comemorei. Voltei para casa no dia seguinte e pela Tv soube que foi encontrado o corpo de Carlos pela mãe. Na casa havia muito sangue e resquícios de cocaína. Carlos e Raquel foram enterrados no mesmo cemitério e junto com eles foi o meu amor. Nunca mais amei ninguém, nem poderia ,sou um monstro, mas monstros com dinheiro são diferentes . Monstros com dinheiro são protegidos pelos mesmos monstros que criaram a sociedade moderna, nada simples de conviver, afinal de contas quando olho pra trás não sei dizer quem são os bandidos e quem são os homens maus.

2 comentários:

  1. Muito foda teu texto... o amor nos cega e faz com que nos tornemos algo maior que tudo... a sociedade sucumbiu e sempre sucumbirá aos meros play boys granfinos da alta classe, porém podemos reagir e mudar isso desde que tenhamos coragem e força de vontade... Morte aos "Carlos" com resquícios de sofrimento... Vida plena para as "Raquel"...

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  2. Andréia Conzatti
    Gostei do texto...um dia quem sabe os "Carlos" sejam apedrejados em praça pública....quem sabe...

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