sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Um passo pra lá

Lembro de estar discutindo com ela quando saí, lembro que era noite, lembro que estava frio. Um vento cortava meus lábios e por pouco não congelava a minúscula lágrima que discretamente escorria no canto do meu olho esquerdo, tentava esconder minha tristeza aos olhos de quem passava levando a mão à frente do rosto, mas um soluço me entregava a quem quisesse ouvir. Esqueci meus óculos e por isso tateava com a mão direita a parede dos prédios, me guiava nos vultos que vinham em minha direção, não via rostos, via manchas. Algumas claras outras mais escuras, manchas menores que as minhas, porque simplesmente eu não me via. Sentei no meio fio, uma mancha se aproximou, uma outra mancha menor apareceu na altura do seu rosto, não posso afirmar que era um sorriso, parecia mais um olhar, não me disse nada, esticou uma mancha com uma ponta acesa na minha direção, aceitei o cigarro. A mancha foi escurecendo e se perdeu pela noite mal iluminada da cidade. Levantei e segui o meu caminho, o som dos carros não ajudava em nada, tentava me concentrar para entender porque eu estava andando na rua, no frio. Parei de novo, olhei para os dois lados da rua, atravessei, sentei num bar e pedi uma cerveja, acendi um cigarro. O garçom me trouxe uma cerveja preta, escorei o braço na mesa e fiquei rolando ele na borda do cinzeiro, uma mosca ficou pairando na minha frente, no início não dei bola. Tomei o primeiro gole de cerveja e a mosca sentou na boca do copo. Tentei fingir que aquilo não havia me afetado, afinal de contas eu já estava arrasado, tinha acabado de levar um pé na bunda depois de doze anos. Ela sempre reclamando que eu não a ouvia, que eu nunca prestava atenção e ... ah, essa maldita mosca! Bati na mesa. Garçom? Por que eu tive que sair de casa? Eu aluguei aquele lugar. Que vergonha, doze anos jogados no lixo. Estaria mentindo se dissesse que lembrava do dia que a gente se conheceu, sinceramente não lembro, Rosana pra mim é como se sempre estivesse ali, entende? Não lembro do nosso primeiro beijo, mas também não lembro de ter beijado boca mais gostosa, seus lábios finos predispõe a luxúria, gosto do gosto que ela exala... O garçom se aproximou. O senhor quer alguma coisa? A mancha do garçom é cinza, neutra, como se não estivesse nem aí pra mim ou mesmo pros meus sentimentos. Mais uma cerveja e mais um copo, por favor. Sim senhor é pra já. O garçom se afasta e junto com ele a maldita mosca que sentava bem feliz na boca do meu copo. A música do lugar era muito boa, pena a rádio estar mal sintonizada.
Rosana sempre foi uma mulher, não sei nem como defini-la, uma mulher blindada. É, uma mulher blindada, nunca consegui entrar nela, entende? Rosana era uma tartaruga, uma mulher que realmente sabia se proteger, sempre me teve ao seu controle, minha submissão era criativa, eu mentia que era arrogante pra que ela me atacasse porque me dava um tesão! Mas o tesão virou tensão e as motivações sexuais passaram para outros corpos, não sei porque ela terminou comigo, eu não fiz nada. Como pode? O garçom se aproximou com a cerveja. Sua cerveja! Mas eu pedi preta. Não, o senhor pediu uma cerveja. Tudo bem, levanta a garrafa que está dentro desse isopor. O garçom obedece. Tá vendo essa cerveja, ela te parece cerveja clara? Não senhor. Ok garoto, senta aí um segundo. Senhor eu tenho que... Senta aí garoto! O garçom sentou timidamente. Me responde uma coisa, já ouviu falar no nome Rosana? O garoto assustado engoliu a saliva. O senhor tá falando da cantora? Não. O meu “não”, traduzia realmente o que eu estava sentindo, porque não era aquela Rosana que eu conhecia também, na verdade eu nem sabia quem era a Rosana. Me diz uma coisa garoto, quantos anos tu tem? Dezesseis. Já amou? Não. Quer ouvir uma história de amor? Não. Não gostei da resposta do garoto. Lembra da cerveja errada? Sim senhor! Pois então escuta essa história e esquecemos o seu erro primário, ok? Sim senhor. Relaxei, servi mais um copo de cerveja, acendi mais um cigarro, ofereci para o garoto, ele recusou, depois olhou para os dois lados e tomou um gole da minha cerveja, então comecei a lhe contar.
Um dia garoto, eu estava sentado na frente da TV e me deu uma fome inacreditável, saí de casa o mais rápido que pude, não tinha muita grana e já eram cinco da tarde, só tinha um lugar que vendia sonho a vinte e cinco centavos, a Casa da Nona. Cheguei lá, estava quase fechando, tinha uma menina, linda, que também entrou. Corremos até o balcão e ao mesmo tempo gritamos: “quero um sonho de mumu”! Olhamos a senhora que atendia e nos olhamos, a boa senhora sorriu e nos disse: alguém não terá um sonho essa noite! Meus olhos estavam fixados nos daquela menina, lembro de sorrir, lembro de pensar que por um segundo na vida eu estava tão feliz, então lhe respondi: não me importo de perder esse sonho pois o meu acabou de se realizar. A senhora entregou o sonho à menina, ela sorriu e disse: “o sonho acabou!!”, e saiu correndo da mesma forma que havia entrado. É desse jeito que eu sonho que a Rosana entrou na minha vida, porque eu simplesmente não me lembro. Tu nunca amou ninguém, não é garoto? Não senhor. É garoto, não ame, o amor pode te deixar na rua, sem dinheiro e sem ter onde dormir. O senhor tem onde dormir? Não. O garçom estava simplesmente vidrado, serviu um copo pra ele e acendeu um cigarro. Se precisar de uma grana, eu lhe empresto Senhor. Obrigado garoto, se pagar as cevas já tá bom demais. Mas por favor Senhor, me fale mais da Dona Rosana. Sim, a primeira grande lembrança que eu tenho dela foi da gente sentado numa roda de amigos em uma praia. Eu entrei numa que ela era uma sereia... Lembro do mar, lembro do calor da areia, lembro de estar discutindo com ela por não entender como eu poderia ter um relacionamento sério com uma sereia, e o fedor de peixe em casa? Onde eu iria enfiar uma sereia?
O senhor é um homem apaixonado? Não garoto, sou um homem traumatizado, doze anos se passaram, não faz sentido na cabeça de ninguém, mas nem poderia fazer, mas eu não sei o que sinto. Rosana se perdeu no mundo, voltou no começo do mês passado. Ficou exatos onze anos e onze meses longe daqui e então bate na minha porta. Ela queria terminar o que nunca começamos, ela me amou do jeito dela, esse jeito que nunca é o que a gente quer, mas é o melhor que ela tem para dar. O garçom começou a se perder no assunto. Eu não entendi o que o senhor disse no final. Eu me levantei da cadeira do bar e disse: todos os finais são iguais, legal seria se alguma coisa continuasse.... como uma dança.... um passo pra cá, um passo pra lá...

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