terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Quando o asfalto chegar

Quando Leonel chegou à Barra, o vilarejo ainda não pertencia ao exército, apesar de muitos não acreditarem nisso. Seu Leonel comprou, a muito custo, um pedaço de terra na única rua que ligava o vilarejo ao resto do mundo, pelo menos por terra era só esse caminho. Com a chegada de novos moradores, pescadores e milicos, o vilarejo cresceu, não muito, mas o suficiente para que muitos carros e caminhões passassem quase que diariamente na frente da casa de seu Leonel.
A família de seu Jorge chegou pelo rio e por conta do valor baixo do terreno, foi morar no lado da casa de seu Leonel, tornaram-se vizinhos. Seu Leonel era agricultor e seu Jorge pescador. A família de seu Jorge foi crescendo com a chegada dos gêmeos e depois da pequena Nina, já a família de seu Leonel não prosperava tanto, mas também seguia seu rumo natural. As pedras e a poeira que subia todo santo dia na frente das casas, não estava sendo um problema, até o dia em que seu Leonel teve que levar sua mulher ao posto de saúde com falta de ar. Chegando ao posto, a enfermeira foi enfática:
- Acho melhor o senhor levar sua mulher no hospital, não temos recursos suficientes para atendê-la.
Com a ajuda de vizinhos e alguns parentes, seu Leonel conseguiu pagar um enterro descente para sua esposa, que partiu vítima de enfisema pulmonar. Em casa tudo tinha mudado, havia silêncio onde antes havia murmúrio, havia frio onde nunca houve nada, mas a tristeza de seu Leonel era grande. Sua lavoura não andava bem, uma seca massacrava cada sabugo que conseguia respirar mais de uma semana, sua vaca estava magra demais para dar leite, até para o seu café da manhã. A menos de dois metros dali, na casa ao lado, se ouvia a família de seu Jorge comemorando e sorrindo quase que diariamente. Pescador de talento, seu Jorge nunca voltou para casa de mãos abanando, era muito cordial e amigo de todos.
Os demais moradores da vila, não compraram os terrenos, acabaram invadindo as terras cobertas pelo matagal. A vila se organizou, chamaram a companhia de energia elétrica e mandaram fazer a instalação de luz. A prefeitura, muito esperta, arrumou “ligeirinho” a rede de esgotos e de água encanada para poder ganhar sua parte através do imposto. Agora, até caminhão de lixo seletivo passava, mas a poeira maldita, que levou o amor de seu Leonel, ah, essa continuava a deixar as janelas de todas as casas fechadas, tornando um segredo a vida de quem dentro delas habitava.
Seu Leonel, apesar da poeira, gostava de ficar nos finais de tarde tomando chimarrão e vendo a vida passar, pelo menos o que ele conseguia através da poeira. Os anos foram se passando e a cada dia, havia mais movimento no vilarejo. Todos os finais de semana, pessoas de cidades vizinhas vinham usufruir das cachoeiras e lagos da Barra. O rio já era famoso por ter os melhores viveiros de peixes da região, até mesmo seu Leonel pensou em virar pescador, mas a vaquinha engordou e a plantação voltou a crescer e prosperar. Seu Leonel acreditava que sua vida havia melhorado, mas ainda faltava alguma coisa para que ela se tornasse absoluta, uma vida digna de quem acordou por cinqüenta anos na beira de uma estrada de chão que ligava o rio da Barra ao asfalto da auto-estrada. Faltava a dignidade de deixar sua janela aberta durante os dias quentes de verão e nas noites, entre os mosquitos e o luar mais lindo do mundo.
Uma manhã, seu Jorge voltou mais cedo de sua pescaria. Recebeu a ligação de sua esposa lhe informando, aos berros, que sua pequena e única filha mulher, Nina, estava doente. Rapidamente levaram a menina ao hospital mais próximo onde foi diagnosticado o mesmo mal que levara a mulher de seu Leonel. Como a menina estava em estágio recente da doença, foi medicada e depois de alguns dias voltou para casa sã e salva. Na manhã seguinte, com a ajuda de seu Leonel e de outros moradores, houve um protesto diante da prefeitura contra aquela poeira maldita. O prefeito prometeu abrir uma licitação de caráter emergencial para resolver o problema dos moradores.
Seu Leonel, seu Jorge e os demais vizinhos, mediram a rua onde necessitava asfalto e enviaram a metragem ao prefeito, que assinou, na hora, o projeto de construção da via pública do vilarejo. Aquele dia foi marcante, todos faziam planos, havia boatos de que, com a chegada do asfalto, viriam comerciantes e um tal “crescimento absurdo” para aquele vilarejo modesto chamado “Barra”. Seu Leonel estava em êxtase, foi na vendinha de seu Romão e pagou, em leite, uma rodada de cachaça para todos. Seu Jorge brindou junto.
- É Leonel, tu vê como são as coisas, quando tua mulher morreu , “que Deus a tenha”, a gente nem pensava em se organizar para conseguir o que a gente queria. Faltou um pouco de atitude naquela época, mas quando minha filha quase morreu, não faltou uma mão para que essa idéia seguisse adiante.
Leonel lembrou da sua mulher e não conseguiu conter o choro, Jorge e Leonel abraçados choraram a vida e a morte no mesmo gole. Dois dias depois surgiram, ao longe, entre poeira e solidão, caminhões da empreiteira escolhida para a realização do que seria “o maior avanço da civilização”, depois da garrafa térmica para aqueles que adoravam chimarrão e odiavam a poeira. Era para mais de cinco caminhões e máquinas retro escavadeiras, os homens com seus uniformes e capacetes davam ao lugar a idéia de que ali o mundo estava prestes a mudar. O que tantas noites tirou o sono dos moradores, agora estava prestes a se tornar realidade.
Seu Leonel saiu à frente de seu terreno para receber com aplausos, juntos com os outros moradores, as máquinas da nova obra do vilarejo. A segunda maior, pois a primeira tinha sido o muro do cemitério. Esse muro servia não só para determinar onde começava e acabava o mesmo, como evitava que em dias de temporais muito fortes os corpos escorressem pelo morro abaixo e viessem parar na rua onde o asfalto não havia chegado. Mas seu Leonel não gostou quando ouviu a seguinte frase do encarregado da obra:
- Vamos começar lá por baixo, são quinhentos metros de asfalto e de boca de lobo, tenho certeza que assim terminaremos em três dias. Vamos lá pessoal!
Quinhentos metros, o número de alguma maneira deixou seu Leonel desconfortável, mas estava feliz pois via com seus próprios olhos o que o ser humano era capaz de fazer. Ele levava água gelada para os operários e a mulher do seu Jorge levava bolinhos e bolachas, tudo para que eles trabalhassem com amor e bem rápido. Dizem as más línguas que a mulher do seu Jorge adorava ouvir as histórias que os obreiros contavam, enquanto comiam tudo que ela tinha para dar. Ao final de uma semana, os olhares que haviam brilhado como a negra cor do asfalto, que tomava a rua e deixava as casas mais bonitas do que nunca, se transformaram em desconfiança, principalmente de seu Leonel. Ele percebia que a obra ainda não tinha chegado à frente de sua casa e, pior, dava a entender que nunca chegaria. Em um dia quente de sol escaldante, seu Leonel percebeu que algumas máquinas estavam de partida e saiu correndo atrás delas para tirar satisfação do que realmente estava acontecendo.
- Ei, ei, ei!! Voltem aqui, faltou a minha parte! Faltou terminar aqui na frente da minha casa! Voltem, voltem, por favor voltem!
Seu Leonel olhou para trás e viu todos os outros moradores festejando diante de suas residências as maravilhas do asfalto. Ao perceberem a tristeza de seu Leonel, foram condescendentes com ele e começaram a chamar os caminhões, tudo sem sucesso. Na manhã seguinte, seu Jorge e seu Leonel foram à prefeitura para reclamar e se depararam com uma situação no mínimo constrangedora: a medida que eles mesmos haviam mandado para a prefeitura, não incluía a última casa que havia sido construída dias antes, fruto de mais uma invasão. Como os engenheiros mediram de baixo para cima, a casa do seu Leonel estava fora dos quinhentos metros de asfalto, sendo assim, não havia erro por parte da empreiteira e muito menos da prefeitura.
- Veja bem seu Leonel, não sei realmente o que eu poderia fazer para resolver o seu caso, uma nova licitação dependeria de aprovação dos vereadores que nesse exato momento estão resolvendo problemas de outras regiões. Sua demanda voltaria para o final da fila, sendo assim, levaríamos mais ou menos uns dez anos para resolver o seu problema. Mas quero que o senhor saiba que estou aqui para ajudá-lo no que for possível!
- Estou vendo! Mas deve haver alguma coisa que possamos fazer para amenizar esse problema secretário. - respondeu seu Leonel.
- Claro que sim, vou ver isso com meu pessoal e amanhã ligamos para dar um retorno, ok¿ Agora, se me derem licença, tenho outras pessoas para atender. – disse, conduzindo-os até a porta.
Nas semanas seguintes, diariamente, às oito da manhã e às cinco da tarde, passava o caminhão pipa para molhar o pedaço da rua que não tinha asfalto. Ao final da segunda semana isso não aconteceu mais, seu Leonel tentou organizar um grupo que fosse conversar com o prefeito, mas infelizmente a única parte que não tinha asfalto era onde ele morava. Isso desmotivou os moradores que já usufruíam da rua sem poeira.
Seu Leonel se tornou um homem de cara fechada, achou que tinha sido traído. Um dia, bêbado, bateu no rapaz que invadiu o último terreno que tinha na rua, o primeiro a ser asfaltado, causando péssima impressão nos outros moradores que começaram a enxergá-lo como um velho ranzinza. Ele, por sua vez, terminou por acolher o estigma. Hoje, quem vai à prainha da Barra, pega muita poeira pela estrada, são mais de dez quilômetros de estrada de chão e quinhentos metros de asfalto. Logo depois da curva a prefeitura colocou pedras de paralelepípedo, imaginando que estavam fazendo para o lado certo, mas infelizmente erraram o lado novamente. Dessa forma a casa do seu Leonel se tornou referência para os turistas:
“ Para chegar na prainha da barra é simples: segue pela estrada de terra até a casa do véio Leonel, que é a ultima com poeira, depois começa o asfalto.”
O tão esperado “crescimento absurdo”, com comércio e lojas, não chegou, preservando boa parte da história do vilarejo. Seu Jorge, hoje, líder comunitário e guia turístico, segue feliz da vida e volta e meia faz umas festas para celebrar as suas conquistas, sempre convida seu Leonel, mas esse não quer saber de nada. Quando convidado para qualquer coisa, a resposta é sempre a mesma:
- Vai pra puta que te pariu.


Fim.

16 comentários:

  1. Belo conto, Cesar. Realista.. reflexivo.Parabéns!
    Bbeth

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  2. Bem escrita, flui bem até o final. Parabéns!!

    Votado

    Bira Machado

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  3. Muito bom!gostei e te digo que aqui aonde eu moro ta cheio de Leonel....E o Prefeito todo orgulhoso do seu asfalto,chamado de "asfalto casquinha"(sorvete casquinha,sabe esse que vendiam na saída das escolas?)

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  4. e quantos vivem na pele do Seu Leonel nesse país ?
    reflete essa nossa mistura de omissão e oprotunismo ... que pena... gostei muito!

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  5. Boa,Boa,Boa!!Me identfico bastante com seu jeito de narrar!!Valeu!!
    Se quizeres conhecer um pouco meu trabalho acesse www.novoelocriacoes.blogspot.com

    Felicidades, Marcelo escrevendo textos, criando almas

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  6. Olha, não consegui parar de ler! Parabéns!

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  7. .passou da hora de publicar em cópias físicas

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  8. isso infelizmente acontece ate hj alguns lugares de poa e viamao e assim 500 metros de asfalto e varios metros sem asfalto pessoas comendo poeira e vivendo o inferno buracos horriveis para quem anda de carro ,mas essa historia vai custar muito a mudar nos temos que dar valor a vida a qualidade de vida que e o melhor de tudo vamos viver em paz e com saude antes que seja tarde adoreiii parabens e conte comigo para sua leituras e uma critica em forma de livro parabens!!!

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